Política Educativa Leva à Frustração
J.Ferreira
Aí vêm mais exames. Provar "o quê"? Com alunos mais motivados para as férias que estão à porta, e tão "motivados" (leia-se, fartos!) é fácil ver como é fundamental avaliar cada vez mais a escola e os professores e cada vez menos os alunos. Constata-se que os alunos estão, cada vez mais "nas tintas" para os resultados das avaliação e cada vez menos para a aprendizagem que se altrera com frequência: o que os leva a reprovar, deixa de ser o correcto e alguns que foram iompedidos por umas décimas de entrar em medicina por não terem escrito alguns "c" para abrir vogais, afinal agora até tinham conseguido pois o Acordo Ortográfico (AO) veio tornar a escrita e a leitura, em muitos casos, absurda (veja-se adopção, "adoção" sem "p" em que a vogal "o" terá, necessariamente, de ser lida como fechada "u", já que a acentuação está no ditongo nasal seguinte "ão"...!).
Ora, o AO veio alterar as regras a meio do percurso académico de muitos alunos. Não se aplica apenas a alunos que ingressam no sistema educativo a partir do ano em que é aprovado, mas faseadamente aplica-se a alunos que aprenderam de determinada forma e agora terão de se esforçar por reaprender a escrever...!
E os que até agora escreviam sem erros, a partir de agora instala-se a dúvida sobre a ortografia adequada das palavras. Não admira que se revoltem e que cada vez mais se estejam maribando para o que lhes é exigido nos curriculos decididos pelos ministros... Afinal, os (des)governantes terão de encontrar forma de os aprovar para não sentirem vergonha dos resultados das estatísticas e para não acabarem penalizados nas próximas eleições!). Todos sabem que são os resultados dos alunos que contam para a avaliação das políticas educativas da OCDE (e do lugar alto tão desejado no tal PISA!). Assim vamos.
No texto de um aluno do 8º ano (que abaixo vos apresentamos) podemos confirmar que já não são apenas os professores que estão fartos de tanta mudança, de tanta instabilidade, do mau trato que os políticos e linguístas infligem à Língua de Camões...
O texto que segue vem dizer-nos que há alunos que se revoltam, silenciosamente, escrevendo textos com alta criatividade (ainda que algumas "falhas" ou alguns "lapsos" conceptuais se se possam neste desabafo). Aqui o publicitamos, aguardando os vossos comentários.
"Vou chumbar a Língua Portuguesa. Aliás, quase toda a turma vai chumbar. Mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em casa“ , “em casa“ era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o “predicativo do sujeito“. Vejamos a frase, “O Zeca está na retrete“, “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita“. Bonita é uma característica dela, mas “na retrete“ é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Zeca que se dane, com a retrete colada ao rabo.
No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”? Julgávamos que era o simplex a funcionar. Pronto, é tudo “complemento oblíquo“ já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum,o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e verbos transitivos indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo; há verbos de estado e verbos de evento, e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados, almoçar por exemplo é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser “Algumas árvores secaram”, “algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente.
No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto” era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.
No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a janela“ o sujeito de “abriu a janela” era ela,subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?
A professora também anda aflita. Pelo vistos no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português,que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo,o que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer, dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa“ isso mesmo, claro.)
Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo “haviam duas flores no jardim. Ou : a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead. Por favor, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.
E pronto, que se lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve redação.O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impôr a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros.
E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua gramática? Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito."